domingo, 24 de outubro de 2010

A máquina Singer

In "DNOTICIAS.PT":

cronica1 A máquina de costura Singer, de tampo de madeira carunchosa e letras douradas gastas, continua em casa do meu pai, no lugar onde a minha mãe a deixou. Na gaveta pequenina ficaram, durante anos e anos, as linhas e agulhas, botões e restos de tecido, um pouco da memória da minha mãe e do modo como governou a casa, como tratou das nossas vidas. Arrumada a um canto e protegida por um pano de reposteiro, a velha máquina fez cortinas, subiu bainhas, ajustou as calças de ganga e, quando parecia impossível, salvou a nossa adolescência.

O meu irmão e eu entramos nessa idade de incertezas e turbilhão interior, de individualismo obstinado e urgente necessidade de ser como os outros na mesma altura em que o FMI chegou a Portugal. A crise galopava, devorava empregos, engolia os salários e, nas lojas, a inflação de 20% não deixava dinheiro para luxos. Mas, por muito que tudo isto fosse verdade, nós continuávamos a ser dois adolescentes. E a minha mãe, que não tinha estudos, nem noções de psicologia, percebeu depressa os milagres que a máquina de costura, velha e carunchosa, podia fazer.

Mesmo sem gostar muito, arrastava a Singer de letras gastas para a sala, abria a janela para entrar luz e tirava a tarde para aturar as nossas manias. As camisas de colarinhos puídos do meu pai e do meu avô passavam  a camisas às riscas com que se podia fazer vista na escola. Das sobras de tecidos da alfaiataria do meu tio fazia saias às pregas e, quando eu pedia muito, dava um jeito a roupa antiga, esquecida dentro de armários. Do mofo e do esquecimento, naqueles anos de aperto, a minha mãe acertou o  casaco Dr. Jivago da minha prima, um conjunto de tweed da minha tia Alice e até o casaco cinzento da minha avó viu a luz do dia.

Contente com aqueles trapos desencantados dos armários, eu usava-os ao estilo alternativo,  misturava com os jeans gastos pelo uso e as camisas que partilhava com o meu irmão. Cada peça de roupa tinha uma história e um percurso, não morria numa estação. Nós não tínhamos direito a isso, a entediar-nos com a cor ou com o feitio. Nós só podíamos  ter esperança  nos milagres da velha máquina de costura da minha mãe.

Ao fim da tarde, depois de coser e descoser roupas antigas, a minha mãe voltava a arrastar a  Singer para o cantinho, no quarto de engomar, mesmo em frente ao espelho. Arrumava as linhas e os botões, os fechos de correr e os restos de tecido antes de cobrir tudo com o pano de reposteiro. Ainda lá está, no lugar onde a minha mãe a deixou vai para 18 anos, depois de me ter feito a saia preta que levei à benção das fitas em Lisboa. O FMI já tinha deixado Portugal, mas a crise levou muitos mais anos a deixar a nossa vida e a nossa casa no Laranjal.

 

Ver mais crónicas, interessantes porque são recordações dos tempos passados e são validas tanto para as ilhas como para o continente,visto que há vários traços comuns:

Aprendiz de costura

A chuva e o Outono

O grande cisma

O dia do Monte

O tempo de uma lei

'A gente não sabia...'
A excursão da paróquia

Terra e água

Molière na cozinha a lenha

O futuro: Nesta altura das reportagens, quando entram em cena os pais modernos, tolerantes e democráticos, percebo que é oficial: não sou deste século. Imagem_cubo_magico

Tão alto como as estrelas

Velharias

A rota da saudade

O balanço

O cubo mágico

A sorte

Bolos

Feliz Natal

...

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